16 de junho de 2007

As Receitas do Herman (livro 1)

Introdução

Uma Aventura gastronómica

Como é mais do que sabido, há duas maneiras de encarar o acto de comer. Ou se come para viver, ou se vive para comer. Esta minha aventura gastronómica por escrito é , decididamente, dedicada ao segundo grupo. Não que tenha algo contra aqueles que acham um desperdício parar muito tempo só para algo tão trivial como “encher o depósito”, no meu caso, porém, desenvolver a cultura dos sentidos gulosos tem sido dos passatempos mais divertidos e enriquecedores de todos a que me dediquei até hoje – e não são tão poucos como isso.

Há quem diga que as receitas são como as anedotas. Já foram todas escritas e descritas. O princípio é o mesmo. Uma base repetitiva e simplista, na qual só muda o talento interpretativo e criativo. Talvez tenha razão quem o afirma mas, apesar de partirem dos mesmos princípios singelos, há na conjugação e tratamento dos alimentos um abrir exponencial de pequenas portas para todo o tipo de excitantes combinações.
Lembro-me do primeiro cozinhado que experimentei, algumas semanas depois de ter ido viver sozinho para um pequeno apartamento em frente ao mar, na Costa da Caparica. Farto que estava da comida acessível e sem arte dos restaurantes das redondezas, que me faziam acordar enfartado e cheio de azia no dia seguinte, e à falta de mão amiga que substituísse a mão materna na cozinha, pedi um livro de culinária emprestado ao meu pai. ( A minha mãe é uma cozinheira correcta, mas o meu pai era um cozinheiro de excepcional talento. Não me lembro de melhores salsichas enroladas em couve lombarda, não me lembro de melhor choucroute, não me lembro de melhor bacalhau à Braz – ou à Lisbonense, como ele insistia em chamar-lhe).
Depois de uma visita à sua colecção de livros, o pai Herman decide-se pela libertação e oferta de um livro de culinária espanhol, profundamente ilustrado, mas de ideias limitadas: “Doce Meses de Cocina”...O primeiro prato que tentei metia beringelas. Saiu uma mistela miserável. Faltou-me o engenho de saber que a fritura do simpático tubérculo não fora feita em gordura bem quente, ensopa e não frita, e que há que deixá-lo repousar meia hora com sal para perder a água. O segundo correu melhor e tornou-se, durante meses, na pièce de resistence de todos os primeiros jantares do meu “sumptuoso” apartamento de 60 metros quadrados : Ragu de Frango.

Era um daqueles pratos que nunca falhavam. Uma base de refogado de cebola, alho e azeite, na qual se douravam partes de frango envoltas em farinha, que depois iam ao forno com batatinhas, pedaços de tomate pelado, bacon e pimento verde finamente picado. Regado com cerveja e caldo de galinha. O orgulho que eu tinha naquela quase-salganhada era indescritível...Sempre acompanhado de uma sangria fresquinha e em conta (maneira de disfarçar o vinho barato – o orçamento por aqueles anos era apertadíssimo), fiz um vistão nas minhas primeiras vernissages, até que o monolitismo culinário me afungentou os amigos. Nada que não se resolvesse semanas mais tarde com outras temeridades gastronómicas.
Começava assim a minha vocação de gourmet, o meu entusiasmo de cozinhar para os amigos e fazer da mesa palco para todos os encantamentos, passei – como não podia deixar de ser – pela fase da “complicação”. Os molhinhos, as ervinhas, os pozinhos...No teatro, quando um actor exagera na representação, chamamos-lhe overacting. Na cozinha, eu chamar-lhe-ia overcooking. Período rococó, que durou alguns anos, carregado de folhados, suflês e tartes.
Com o amadurecimento e a quilometragem, instala-se o encanto pela descoberta da simplicidade. Já Alain Ducasse (um dos meus gurus) insiste na máxima de que “a natureza fez os produtos perfeitos, não vale a pena esforçarmo-nos muito para os adulterar na cozinha”. O truque está em aprender a cozinhar com todos os sentidos, e a favor dos elementos/alimentos, nunca contra. Saber a junção dos paladares. E , sobretudo, ter a coragem de omitir. Tal como na construção de uma carreira, muitas vezes os sucessos podem ter mais a ver com o que Não se usou, do que aquilo de que se abusou.
Nesta distendita leitura que vos proponho, através de uma das minhas artes favoritas, é importante que fiquemos esclarecidos nos seguintes pontos :
Este não é um livro para profissionais, e não tem qualquer outra ambição que não seja funcionar 1) como pontapé de saída aos muitos apaixonados pela cozinha que ainda não descobriram um caminho 2) pretexto para provocar aqueles que como eu fazem da culinária um dos seus divertimentos principais. A linguagem é a do cidadão, alguns dos truques eventualmente imperdoáveis aos olhos da gastronomia profissional ortodoxa.
As propostas de receitas não obedecem a qualquer ordem especial. São experiências acumuladas de muitos anos a correr mundo e a fazer “patuscadas” para os amigos. Cada uma delas faz parte de uma pequena/grade experiência, de uma pequena/grande história, de uma viagem, de um momento peculiar que convosco decidi compartilhar. Muitas vezes, os comentários servirão também para melhor enquadrar a lógica do prato em questão.
A viagem está dividida em cinco etapas. Nesta primeira, damos uma saltada rápida até alguns países que evoco através das suas receitas mais emblemáticas. Todas elas são estimulantes, saborosas e de fácil confecção. Apertem os cintos que a viagem vai começar ( com a garantia de que vão ter de os desapertar logo a seguir)...

Receita:

Sou feliz quando estou nos Estados Unidos

Caesar´s Salad

De todas as saladas, esta é a mais mítica.
Fica aqui a receita como curiosidade, também ela ponto de partida para todas as experiências. A minha primeira Caesar´s Salad mítica, comi-a na minha primeira viagem a Nova Iorque, a minha cidade fetiche, onde de bom grado envelheceria entre teatro, museus, e “jazz”. Pedi-o num “room service” dum simpático hotel sem história, mas com uma cozinha correcta.

A base das Caesar´s (para além dos verdes) são:
- Os ovos cozidos
- o alho
- as anchovas (discutíveis bichinhos para muitos, mas deliciosos quando bem utilizados)
- o adorável cebolinho
- o inevitável estragão fresco
- e o rei de todos os queijos :
O parmesão

Os americanos têm um truque para transformar as suas saladas em acontecimentos:
- As folhas, depois de lavadas, são embrulhadas num pano branco e são metidas no frigorífico por três horas – três!
- Essenciais são ainda os croutons. Nada dietéticos, mas com uma alma insubstituível.
- Aqueça-se azeite e manteiga numa frigideira, fritem-se quadradinhos de bom pão de forma, mexendo sempre, e incorpore-se o queijo parmesão de molde a que se case com o pão. Guarde-se e deixe-se arrefecer.
- Pique-se o alho, misture-se com o sumo de um limão, mais azeite, e está feita a base da salada.
- Juntem-se as anchovas cortadas em tiras de um centímetro, mais os verdes cortados, ainda o cebolinho e o estragão picado e sirva-se imediatamente, quando os verdes e o pão ainda estão crocantes ... Abram uma Corona, ponham Diana Krall a tocar e deixem-se levar pelo american way of life.

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