10 de junho de 2007

Entrevistas de Arquivo- Expresso – 30 de Dezembro de 2006


Nunca se chega a recostar verdadeiramente no sofá durante a tarde em que recebe o Expresso na sua casa de Lisboa. Porque não pode, e não pode porque não quer. Põe o telemóvel no silêncio mas perde-se a conta aos SMS que recebe e envia. Levanta-se várias vezes, ora para mandar servir os pastéis e sumo de laranja que servem de almoço, ora para ir buscar café, experimentar uma camisola nova ou mostrar o seu mais recente “vison”. Ou então interrompe a conversa autorizada para longos “offs” tão surpreendentes quanto picantes. Em “on” o “timing” é todo ele televisivo, das gargalhadas às pausas, sempre sublinhadas pelo olhar – enigmático, cúmplice, às vezes quase gélido. Eis o “verdadeiro artista” investido na sua personagem mais conseguida : a de Herman José.

Regressa ao humor puro e duro com o “Hora H”, o seu novo programa na SIC, mas já avisou que vai ser “soft”, como Solnado na era de Marcelo Caetano, porque vivemos numa semiditadura. Que quer dizer com isto ?
Essa declaração aparentemente não fez confusão a ninguém. Se eu fosse primeiro-ministro tinha-me convocado no dia seguinte. São avisos gravíssimos que faço à Nação, dizendo que hoje ainda temos de ser pequeninos soldados como na época do marcelismo. Digo isto e fica tudo com a cabeça enterrada na areia.

Mas isso significa o quê?
Não me peçam para explicar mais nada. E também não seria através de um jornal que o faria , mas nas instâncias próprias que se interessem pelas minhas razões de queixa. O problema é que em Portugal nunca se sabe bem quais são as regras.

Está a dizer que o têm censurado ?
Sempre.

Em quê?O Herman não é o português a quem tudo é permitido?
Como podem dizer isso se fui tirado do ar em 1988 quando estava a fazer o “Humor de Perdição”, e estive oito meses no índex da televisão!? Essa foi a grande machadada que me transformou num tipo muito mais materialista e muito menos romântico. Estive a queimar as pestanas para fazer um produto intelectualmente elevado e a paga é suspenderem-me porque havia 22 telefonemas a dizer que o programa era porco e nojento? Na altura pensei: “É para isto que me estou a chatear? Então vou brincar, vou ser rico”

Relemos o “sketch” da entrevista à Rainha Santa Isabel, que já não foi para o ar, e era inofensivo.
O humor é profundamente incómodo. Aquela gente foi toda formada numa altura em que se mandava “desligar” uma anedota. Inventaram que do manto da rainha saíam preservativos em vez das rosas. Essa passou a ser a verdade oficial que motivou um abaixo-assinado da Igreja. Vinte anos depois continuam a não me dizer quem inventou aquele boato. São tiques recorrentes no sistema português...Julgava que depois do 25 de Abril seríamos um país interessante. Não só ficámos pelo caminho, como fui descobrindo que há zonas pelas quais o 25 de Abril não passou.
Que zonas?
Toda a estrutura do Estado é um edifício que não foi implodido e por isso é anacrónico, dando resultados extraordinários em áreas como Finanças e a Justiça...

Está a referir-se ao processo Casa Pia?
Sim, mas sobre isso não devo falar porque, apesar de não ser arguido, o processo está em julgamento.

Agora é testemunha mas chegou a ser constituído arguido com a acusação do crime de acto homossexual com adolescente. E cortou relações com o Expresso por causa de uma manchete sobre esse assunto...
Uma acusação relativa a uma altura em que eu estava no Brasil! Tive alguma compreensão quando os órgãos de comunicação social serviram de veio de transmissão da informação que vinha da própria investigação, apesar de ser uma situação atípica. O que achei extraordinário na primeira página do Expresso de 21 de Maio de 2003 é que há factos novos construídos por uma dita jornalista de investigação completamente fantasiosos, baseados em pura loucura, que não só foram investigados como não fazem parte de nenhum processo. Mas o tempo cura tudo e o Expresso também mudou.

Como foi afectado o seu dia-a-dia?
Com o público nunca senti animosidade, 30 anos de convivência diária dão um conhecimento profundo da outra pessoa. É como se o público percebesse: “ a gente topa bem este gajo e sabemos como ele funciona, mas isto da pedofilia não faz sentido”. Muitas das coisas que mudaram na minha vida foi por decisão minha, como as colaborações comerciais, porque as marcas não se podem dar ao luxo de correr riscos. Por exemplo: numa empresa há um gala apresentada pelo grande artista Herman José; os accionistas espanhóis perguntam quem é e de cá respondem: “É o mais caro e o melhor que temos”. Eles fazem um “search” na Net e os primeiros 33 “sites” são todos com notícias do Herman José arguido num processo de pedofilia!

Mas apresentou a gala dos Globos de Ouro da SIC em 31 de Maio de 2003, o mesmo dia em que foi prestar declarações ao DIAP e poderia ter ficado detido.
Aí estamos a jogar no campo das audiências. Vale tudo. A SIC tinha todo o interesse em que eu apresentasse essa gala. Tivemos 46% de share, uma loucura. Os espectadores queriam ver como me aguentava, se tinha cara de criminoso...

E como se aguentou?
Sou um gajo inatingível. Sou muito estruturado em todos os aspectos. Senti que estava dentro de um filme, mas que o final era feliz e era meu. Isso dá uma energia, uma força quase arrogante que um culpado simplesmente não consegue ter.

Estava em cima daquele palco a ser “julgado”.Tinha de agarrar o momento e superar isso. Como conseguiu?
Com a prática. Quando o meu pai morreu, no dia a seguir fui fazer um programa em directo. Foi um dos piores momentos da minha vida. Mas fiz.

Não se permitiu parar ? Por um dia?
Não. Por razões pragmáticas. Tínhamos mais de 70 ordenados para pagar. Não havia volta a dar ... Sou um sobrevivente. Mas perante uma fase de total esquizofrenia como o caso Casa Pia, mesmo sabendo que as coisas dariam a volta, tive de ter uma força desumana para aguentar.

Nunca lhe passou pela cabeça que a situação poderia não se inverter?
(Pausa) E se tivéssemos sido atropelados?...Mas cheguei a telefonar à minha mãe: “o sistema enlouqueceu, não fiques triste se eu for para a prisão”. Diziam-me os advogados: “Em Portugal, ninguém vai para a prisão só com pessoas a dizerem coisas.Impossível!” Parecia-me, no entanto, que as coisas estavam a ir por um caminho estranho. Pedi aos advogados que preparassem o despedimento das 150 pessoas que na altura trabalhavam comigo porque, se acontecesse algo mais grave, não podia garantir os ordenados. Estava preparado para todas as eventualidades. Até para ir para a prisão.

Na tal gala dos Globos de Ouro o comportamento das pessoas para consigo foi habitual ou mudou?
Havia as pessoas que gostavam francamente de mim e estavam emocionadas. Outras tentavam disfarçar a profunda alegria por me verem em queda : sai um general, o espaço fica vago. Digo isto sem mágoa ou criticism. É a lei da natureza...

Predadores?
Predadores! Nunca me enganaram. Mas percebo. Se calhar um dia estou no mesmo papel, ou já estive...Aí não sou nada puritano. Havia ainda pessoas que estavam confusas: “Será , não será ? Se calhar, o tipo é maluco...”Porque quem não me conhece pensa tudo : que sou o gajo das orgias, da cocaína...Já estou habituado. A minha grande vantagem é ter uma vida tão quadrada e sedentária... Gosto de jantares, estar em casa, ver cinema...Não saio à noite nem em Ibiza porque quero ir para o mar às oito da manhã. Não tenho instintos de borguista e irrita-me que pensem que “snifo” coca.

Nunca experimentou?
Posso jurar pela vida da minha mãe : nunca usei cocaína. Confesso que, a certa altura, tive medo de gostar e quando experimentar não me custa nada dizer. É tão inverosímil um homem de 52 anos dizer que nunca experimentou que o leitor vai pensar : “Pois sim, deve ter sido, deve!”

E outras drogas?
Aos 17, 18 anos fumei erva. Deu-me pedras horríveis e ataques de asma. Há quatro anos em Ibiza experimentei meio “ecstazy” e deu-me um efeito maravilhoso. Estive a dançar até às 11 da manhã e ao meio-dia dava aulas de arquitectura (!) aos meus amigos. Não me calava. Só com meio “ecstazy”. Imaginem!

No novo programa vai ter um “gay”. É uma atitude provocatória?
Não ! Provocar foi na altura própria, quando estava acusado. Nunca o meu “Nelo” foi tão disparatado. Fiz questão de mostrar que não ia fazer o mínimo esforço para que pensassem que a partir daquele momento iria fazer o papel de santinho. Usei bem o facto de ter a bola vermelha no canto do Herman Sic. Ter agora um gay neste programa é o mesmo que ter uma chique ou uma prostituta.

São “cromos” que funcionam sempre ?
A bichiche dá muita vontade de rir. E o “Nelo” mexia numa coisa que é fatal: casar para ter uma fachada, e subir na carreira...Conheço demasiados casos destes.

No meio artístico há muitos casos de ambiguidade quanto à orientação sexual. O Herman é um deles.
Sempre achei divertidíssimo. Tenho uma querida amiga, uma louraça explosiva, com quem apareço em muitos sítios e quando chegamos fica tudo muito incomodado. É quase uma comoção! Mas se chegar com o rapaz mais bonito do mundo, aí já é tudo normal (gargalhadas). Já inverti os papéis, o que é fantástico.

Gosta dessa ambiguidade ?
É um forma de sacanear as pessoas que me diverte imenso. Quando vou com ela para Nova Iorque, se houver portugueses no hotel e virem que estamos no mesmo quarto, ficam em estado de choque : “ No mesmo quarto ?! A fazer o quê?”

Não teme que o público o rejeite?
O público mais simples está-se a borrifar. Essa preocupação é sempre ao nível de uma comezinha classe-média que vive da pequena coscuvilhice e que saliva a pensar nessas coisas. Eles próprio muitas vezes não estão bem resolvidos e diverte-me fazer-lhes cócegas. É uma ambiguidade que irei manter até ao fim da vida. Jamais mexerei uma palha para provar seja o que for.

Diz-se que a sua ambiguidade seria esclarecida após a sua mãe partir...
É mentira. A minha mãe faz parte da minha intimidade. Ela vai comigo para Ibiza. Acham que fica fechada no armário?

Põem-no à prova ?
Sobretudo as mulheres adoram pôr-me à experiência. E geralmente saem sempre felizes e satisfeitas (gargalhadas)

E os homens ?
Tenho muito pouca saída com homens, não me perguntem porquê.Devo inspirar muito um tipo de carinho maternal.

Já contou como perdeu a virgindade com uma senhora mais velha.
Em Marbella, uma senhora maravilhosa chamada Joelle. Sinto-me muito confortável com as mulheres. A qualidade da amizade e do toque feminino não é comparável ao masculino. A capacidade masculina de gostar tem seis aromas e a das mulheres tem pelo menos 15 mil

Quais são os seis aromas masculinos?
Pila, pila, pila, pila, pila, e depois mais qualquer coisinha...(gargalhadas)

Chegou a viver com duas mulheres.
Uma durante muito tempo, outra foi a primeira paixão avassaladora. Depois percebi que jamais poderia viver com alguém. Tenho um tipo de vida invejável: se me apetecer, no final desta entrevista, meto-me num táxi e vou para o aeroporto. É um privilégio que não tem dimensão, E como não tenho filhos...

Confessou que nunca teve filhos porque lhe iriam trazer vulnerabilidade.
É verdade. Somos completamente destrutíveis a partir dos filhos. A minha única porta de entrada é a minha mãe.

Quando enfatiza que é um ser absolutamente racional e nunca perde a cabeça, não está a fazer rábula?
Não. Nunca consegui, por exemplo, ter um orgasmo com a música ligada porque o meu cérebro fica ocupado a codificar os acordes. Também não consigo comover-me num filme porque estou a ver onde está posicionada a câmara. Nunca desligo. Tenho o cérebro cem por cento ligado na zona racional. Estou sempre em controlo. É muito cansativo.

Mas não quer desprogramar-se.
É o que me tem safo neste país – ser um ser humano assim.

Teve muitos convites para sair de Portugal. Porque nunca foi?
Por falta de coragem e total incapacidade de arriscar. Tudo péssimas razões. Se vivesse outra vez faria imensas coisas diferentes. Ir para o estrangeiro seria logo a primeira. Finalmente começo a combater o meu enorme comodismo e a ganhar alguma capacidade de risco. Por exemplo, marcar uma viagem e ir.

Isso é um risco !?
Para mim era. Podia perder um espectáculo, podia estar nevoeiro... Era um acanhado da pior espécie.

Acanhado !? Não combina consigo.
É, por exemplo, desafiarem-me a ir até à Nova Zelândia e eu reagir logo com um “ ai não, é muito longe e pode acontecer alguma coisa... Vão vocês que eu fico aqui a ver televisão”. É o tipo de acanhamento que também impede de ir para o Actor´s Studio, Em Nova Iorque, ou aceitar um convite para trabalhar no Brasil.

Isso é medo.
É mais do que medo. É uma coisa que está cá dentro, é o tal acanhamento. Quando era puto, como era um bocado imberbe e os meus pais me obrigavam a andar de calções quando já tinham jeans, tinha de entrar na sala de aula fingindo que gostava de me vestir assim e dava a volta chegando com grande alarido e fazendo piadas. Pelo humor, havia sempre maneira de combater a timidez. Essa é a técnica que usei ao longo da vida. O atrevido, aparentemente, não está lá dentro. E agora que estou a perder o acanhamento já tenho 52 anos.

Quando teve consciência do dom do humor?
Desde sempre percebi que através de uma gracinha conseguia aquilo que os outros não conseguiam por não terem a capacidade de fazer rir. No colégio quando fazia um disparate, logo desfazia, com uma graça que punha a professora a rir e a passar-me a mão pela cabeça. É por aí que vou, desde que me conheço.

É um grande poder.

Claro. A quantidade de gente que conquistei com uma gargalhada. Nem imaginam ! As pessoas riem pouco muito pouco. E também já criei inimizades. Jorge Sampaio e a mulher não aguentaram uma piada genial. Quando um segurança de Belém foi apanhado com um quilo de heroína, disse no meu programa: “Esta semana passou mais droga pelo casal Sampaio do que pelo Casal Ventoso” A Maria José Ritta deu-me um raspanete em público e ele deixou de me falar. Nunca mais fui convidado para Belém e até acho que fui retirado da lista do Protocolo de Estado. Para mim a Presidência da República passa de Mário Soares para Cavaco Silva.

Não sente pânico de perder a capacidade de fazer rir?
Essa vai ser a grande inquietação dos meus queridos colegas e amigos “gatos”, gerir essa expectativa e essa necessidade exponencial do público de querer mais, e mais...”Então? Isso já fizeste...Isso também! Vá, dá lá mais,então e agora ? Isso já conheço!” Esta é a parte mais cruel.

Depois do nível do “Herman SIC” ter baixado até à bola vermelha, de ter descido a pique nas audiências e de ser acusado de já não ter graça, não receia voltar ao formato de humor?

Ainda há por onde crescer. Felizmente estou há muito tempo sem criar e há personagens novas na sociedade portuguesa. O mais surpreendente no “HORA H”, vai ser o próprio formato que não é nem habitual, nem previsível. Mas não vou revelar devido à concorrência. O que posso adiantar é que vamos correr riscos porque a encomenda da SIC é para fazermos muito bom. Claro que se também for popular é maravilhoso, como está a acontecer com os Gatos, justiça lhes seja feita, que é uma vitória invejável.

Vai regressar aos gloriosos tempos de programas como o Tal Canal ?
Isso é irrepetível. Vamos com certeza voltar a um conceito muito inteligente e trabalhado. Mas há muito menos dinheiro. Só avisei para não me pedirem audiências. Se tiver, melhor, mas não vou subvertê-lo e fabricar Floribella.

Pela primeira vez esteve à beira do despedimento, com manchetes sobre as intenções do director da SIC do tipo : Penim quer acabar com Herman Sic.
O Penim nunca me obrigou a nada. Eu é que lhe disse : Não vale a pena nem a bola vermelha nem este caminho porque não resolve a crise de audiências. Vamos então fazer um programa familiar.

Porque baixou tanto o nível?
Começou a moda das ca****das com o Levanta-te e Ri!, uma orgia de palavrões que chegou a líder absoluto de audiências. A lógica foi : Ai é isto que está a dar e que querem ?! Até foi libertador e deu-me uns shares maravilhosos.

Marcou o humor em Portugal. Porque razão foi agora atrás dos outros ?
Porque estava mais preocupado com a venda do produto e a sobrevivência das audiências do que com o conteúdo. Prescindi de Nelos e Idália – que davam imenso trabalho mas as pessoas desapareciam da antena - , em contraponto às Lindas Reis...! às tantas, a coisa artística vai-se embora e começamos a defender o negócio. É muito perverso.

E arrasa a imagem do artista.
Estão a brincar comigo !? Isto aconteceu a seguir à Casa Pia e quando um ser humano é arrastado para um processo de pedofilia deixa de ser considerado seja o que for. Portanto, é indiferente ser com palavrões, meninas nuas, mamas....

O facilitismo já vinha de trás. Nesses dois anos foi a bandalheira.

Não é bem bandalheira. É também a procura de soluções para combater reality-shows caríssimos contraprogramados na TVI em cima dos meus programas.

Não deixa de causar perplexidade ter feito uma coisa tão má.
Atenção porque nunca tive a noção de que estava a fazer uma coisa muito má. Diverti-me imenso com coisas objectivamente muito más, mas deliciosas, como a Linda Reis a fazer de princesa Diana. No meu critério era apenas um disparate, no do crítico, uma desgraça. Agora, não tenho desculpas de nenhuma espécie, artisticamente estou excelente, embora saiba que vou ter de o provar em 2007. O que perdi, com muita pena, foi a juventude. Revi-me recentemente a fazer de Florbela Espanca no Parabéns, em 93, e é um regalo para a vista : a pele, o ar, a convicção, a voz....

Como fez para ultrapassar ?
A inteligência é saber criar personagens da idade do actor. Não voltarei a fazer de Nelito ou de Marilu. Não quero ser daqueles velhos actores de revista, de capachinho a fingir que são crianças. Não é esse o meu entendimento do humor. Outro dia vi um especial dos Monty Phyton que se reencontraram com 60 anos. Só me deu vontade de chorar.

Porque pintou o cabelo de louro ?

É um razão tão simplória...Ofereceram-me um champô e , de repente, estava laranja, uma desgraça – parecia o Fritzenwalden, o namorado da Floribella. Decidi então pintar e achei divertido ficar louro uns tempos. Agora já não sou capaz de me ver de cabelo escuro – pus uma cabeleira escura para um pergonagem e, de repente, parecia o meu pai.

O envelhecimento do cómico é impiedoso.

Há um lado sempre trágico no envelhecimento. Não há nada mais dramático. Essa é uma das minhas obsessões. Quanto ao envelhecimento do cómico, solitário e triste, é um mito bonito, mas não é forçoso que assim seja.

Sempre foi uma obsessão?
Só depois dos 50. Comecei a olhar para a minha cara e a ver outra pessoa. Não engordamos por dentro. De repente, estamos com mais dez quilos, sem dar por isso. O processo de envelhecimento é idêntico: até uma certa altura é indiferente, mas há um momento em que olhamos para a nossa imagem e percebemos que entrámos no terceiro acto. Lembro-me do meu pai com 78 anos ficar a olhar para o espelho e dizer-me: “Olha-me para isto pá! Eu não sou este tipo!” Meses depois estava a morrer. Entrei no meu terceiro acto há dois anos. Isso chateia-me.

Como saboreia o tempo presente?
É maravilhoso, tenho uma certa serenidade, fiz uma rearrumação na minha vida. Este acumular de experiências é fantástico. Saber qual é o hotel favorito em NYC, ter amigos em todos os sítios do mundo, chegar a Londres e arranjar bilhetes nas primeiras filas...A pessoa sente que existe, que domina. E ao longe ainda está comestível. As meninas ainda pedem autógrafos com as mãos a tremer e as mães ainda me dão abracinhos e dizem “gosto muito de si” enquando vão enconstanto as mamocas ao meu peito ainda firmes das aulas de ginástica!

Falou em rearrumações.

Até a minha mãe rearrumei. Estava a morrer de tristeza, foi tratada, está óptima, mas percebi que era interessante tirá-la de casa, que era um mausoléu em honra da memória do meu pai. Trouxe-a para um andar onde mora o Sócrates. Agora é vizinha da mãe do Sócrates – dizem que naquele prédio estão as duas mães mais famosas do país. Dão-se lindamente, a mãe do Sócrates adoram-me e a minha mãe adora o Sócrates.

Tomam chá e falam dos filhos

Conversam no hall de entrada

Aproximam-se de si pelas oportunidade que pode proporcionar?
Não. E também não ando por aí, não é fácil chegar perto de mim. A única coisa que me aconteceu muito desagradável foi um funcionário que estava comigo há 20 anos e me burlou. Devido a rearrumações das minhas empresas, chegou-se à conclusão de que havia um buraco de um milhão e 300 mil euros. O caso está agora na Justiça.

Também sobreu um roumbo financeiro nos seus restaurantes.
Assumi um dívida de um milhão e meio de euros, porque as coisas correram mal e os outros sócios não tinham dinheiro. Em matéria de dinheiro, nos últimos anos caíram-me três bombas atómicas.

Qual foi a terceira?
Um milhão de euros de direitos de autor que não foram considerados e que ainda estou a pagar ao abrigo do Plano Mateus.
Durante uns tempos, os direitos de autor tiveram 50% de desconto de impostos. Como facturava que me fartava, o fisco entendeu que era dinheiro demais para ser descontado e exigiu-mo de volta. Reclamei da decisão. Em cima disto cai-me o Processo Casa Pia, que me fez baixar em cerca de 50% a minha facturação.

Entretanto comprou o Teatro Tivoli.

É um leasing que há-de ser pago um dia. No meio destes descalabros também há coisas óptimas. Como o Tivoli, as tournées ao estrangeiro para a emigração e as vendas dos meus discos.

Quando resolveu brincar aos ricos fez um grande alarido disso...
Ai, não que não fiz!

A exibir os barcos, os carros...
Um rapaz que aos 26 anos vê chegar o seu primeiro Rolls Royce nove é pedir muito que não seja deslumbrado. Tive um drama na adolescência que me condicionou: eu era o amigo remediado dos ricos. Quando comecei a ter acesso Àquelas cosias, à custa do meu esforço, tive uma reacção exagerada. Recordo uma entrevista em que há 18 planos, em poses supostamente chiques, onde aparece o meu primeiro relógio de ouro.

Agora é mais discreto
Estou tão normal! Uma equipa do Biography Channel que esteve a fazer um programa sobre mim ficou tristíssima porque andei num Mercedes A e queriam ver-me num carro tipo artista! E, quando cheguei ao julgamento da Casa Pia nesse carro, um policia disse-me baixinho: Estávamos à espera de ver uma bomba e veio naquilo? Instintivamente tornei-me uma pessoa mais elgante.

Tanto gozou com as tias e transformou-se num tio da Lapa!
Não sei o que me deu nem tenho nada a dizer em minha defesa. Foi uma fase de mimetismo e um ataque de estupidez.

Necessidade de ser aceite no meio?
Não ! É apenas o ser humano que é tonto. Felizmente tenho capacidade de autocrítica. Às tantas, olhei para mim e pensei : Mas estou completamente ridículo, o que me anda a dar!? Tanho vários personagens no armário e diversos guarda-roupas: jeans com brilhantes Swarovsky no cu e casacos de pele, mas também blasers, gravatas e smokings.

Gosta de brincar a mascarar-se.

Cá dentro também mudo um bocadinho. O problema da fase tio é que passei a ser um Bernardo Teixeira da Cunha de motorista e Rolls Royce, convencido de que ia ser aquele homem para o resto da vida. Percebi que era mentira e guardei essa personagem para as alturas próprias: se tiver um jantar em casa de uma cagona qualquer em Cascais, chego ainda mais cagão do que toda a gente, com o Patek Philip em platina mais caro do mundo, e faço de tio. No dia seguinte vou à ginástica e sou igual aos colegas do ginásio. À noite, vou para os Bastidores trabalhar, de jeans e camisa, servir o meu público e ser mais um deles. Gosto do mudar de personagem. É esse o encanto!.

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